Ano de 1639. Mais um navio negreiro aportava nas costas de um país apelidado de Terra do Nunca, pelos negros que restaram vivos ao final da viagem. Amarrados uns aos outros, fracos, famintos e doentes. Assim estavam os negros que restaram daquela viagem infernal.
Uma jovem, de olhos tristes, contrastando com a beleza de seu rosto e perfeição de seu corpo escultural, restara entre eles. Caminhava com dificuldades, pois seu corpo doía demais, especialmente seu ventre. Coração aos pedaços por ter deixado do outro lado do mar o seu grande e primeiro amor e também pelos abusos sofridos na viagem pelo capitão do navio. Fora obrigada a “servi-lo” todas as noites.
Ela não seria colocada na exposição do mercado negro para venda, pois já era encomenda certa de um poderoso senhor de escravos, nas terras da Bahia. Como não tinha mais forças para andar e se morresse, o mercador não receberia a quantia estipulada, colocaram-na no lombo de um jumento e mesmo assim, chegou desmaiada na fazenda. Foi socorrida e salva pela Nhá Dita, negra velha curandeira que cuidava dos doentes da senzala. Recuperou-se e assim que estava bem, foi apresentada ao Sinhozinho, que se encantou com a beleza da negrinha e já pensava em “usa-la” para satisfazer seus desejos de homem, quando ele foi morto por uma onça pintada enquanto caçava na mata.
A viúva desconsolada, ficou com apenas um filho de 7 anos na época. Muito triste, vivia acamada e por isso angariou a negrinha recém chegada para trabalhar como sua ama particular. A administração da fazenda e os negócios todos, foram entregues ao seu irmão que chegava da Europa onde havia se formado em seus estudos.
Em pouco tempo a negrinha que recebera ali o nome de Maria do Rosário, através do batismo que o Padre Capelão obrigava os escravos a se submeterem, percebeu que a sua barriga crescia. Ela havia engravidado durante a viagem, daquele capitão desalmado. Seu choro nas noites solitárias não era o mesmo dos outros escravos da fazenda que amarguravam somente a saudades de sua terra e de seu povo. Ela, além das saudades de seu grande amor, trazia no ventre o fruto de toda violência que mais abominava no mundo, a qual foi submetida por um branco desalmado.
O Senhor que assumiu a fazenda era de bom coração e embora os mantivesse escravos, na sua fazenda não havia tronco e nem castigos cruéis. Todos comiam bem, vestiam decentemente e tinham o domingo de descanso.
Maria do Rosário vivia na casa grande e ali nasceu sua filha, aos cuidados da Sinhazinha. A menina veio saudável e do pai só herdou os olhos cor de mel e uma pinta marron no ombro direito. Sua pele, na mistura do negro e do branco era dourada e seus cabelos cacheados eram também de um dourado escuro.
Embora toda apreensão da gravidez, Maria do Rosário acolheu aquela criança com muito amor e a deu para Sinhazinha batizar com o nome de Amparo.
A menina cresceu na Casa Grande sob os cuidados de Sinhazinha, sua madrinha e até aprendeu a escrever seu nome. Logo virou moça bonita e muito vaidosa que gostava de requebrar as cadeiras diante dos negros da fazenda e se divertia em assanha-los. Maria do Rosário, preocupada com os maus modos da menina, vivia reprendendo-a .
Sinhazinha se afeiçoara a Amparo, pois seu menino agora estudava nas terras da Europa e só voltaria quando findasse seus estudos. Disso se aproveitava a moça que “herdara o mau gênio daquele maldito capitão do navio”, como repetia Maria do Rosário. Não foram raras as noites em que Amparo fugia pela janela para se encontrar com um negrinho da senzala, para namorar à luz do luar.
Naquela primavera estaria voltando da Europa o herdeiro da fazenda. Moço bonito e inteligente, mas como seu pai, rígido e mal humorado.
Assim que bateu os olhos na escrava que não poupou olhares e requebrados, acendeu nele um desejo insaciável de possuí-la para si. Mas como sabia que ela era protegida de sua mãe, esperaria a melhor hora para traze-la até seu quarto durante a calada da noite. E o fez sem dificuldades, já que ela colaborou com a situação.
Foram noites de intensa paixão, onde o Sinhozinho bebia muito e usava a moça ao seu deleite. Ambos se divertiam com a situação, e pela pouca idade, deixavam que o fogo do desejo os conduzisse, ignorando que ultrapassavam os limites do certo e do errado e que o destino lhes reservava uma surpresa desagradável.
Quando o dia amanhecia, Amparo voltava sorrateiramente ao seu quarto, mas naquela madrugada foi acordada pelo gemido do moço e quando acendeu o lampião o que presenciou foi assustador. Ele estava de olhos esbugalhados, babando sangue e com os lábios roxos. Engolindo um grito de horror, vestiu-se e abandonou o quarto com o coração aos saltos. Não sabia como agir e após tentar concatenar os pensamentos, mesmo sabendo que isso a condenaria, correu chamar sua mãe dizendo que ouviu um grito do Sinhozinho, mas que seu quarto estava fechado por dentro e ele não respondia quando batia na porta. Logo o alvoroço na Casa grande se fez e seu tio e tutor, foi quem arrombou a porta do quarto. Entre os gritos das mulheres e a imediata providencia dos homens, em meia hora estava lá o médico, mas já era tarde. Ele tivera um provável ataque cardíaco com morte instantânea. Depois disso, na busca de seus documentos no país onde estudara, Sinhazinha soube que lá ele já se tratava com médico local por problemas de saúde e que estava proibido de grandes esforços, como também de ingerir bebida alcóolica. Nunca falara nada disso com sua mãe.
Amparo, deste dia em diante perdeu o brilho. Ela mesma não sabia o quanto gostava daquele rapaz. Seu coração doía demais e a saudade a consumia de tal forma que acabou adoecendo. Sinhazinha, diante de tanta perda, se consumia dia após dia, encolhida em seu leito. O médico era visita diária naquela casa e os negros da Senzala faziam suas rezas aos Orixás pedindo que Sinhazinha não morresse também, pois nutriam imenso amor pela patroa.
Amparo em pouco tempo fortaleceu sua saúde, mas descobriu que carregava um filho na barriga. Então foi obrigada a contar para sua mãe e para Sinhazinha que esta criança era cria do Sinhozinho que morrera. Maria do Rosário sabia de suas noitadas junto ao patrãozinho, mas não podia tomar nenhuma atitude. Como ela, a filha era uma escrava e além disso, sabia que a moça se comprazia com a situação. Sinhazinha sabendo que receberia um neto, recuperou-se de imediato e o esperava ansiosamente.
Em noite linda de lua cheia, enquanto a senzala toda cantava os louvores aos Orixás, Nhá Dita e Maria do Rosário faziam o parto de Amparo. Horas de sofrimento e finalmente ouviu-se o choro da menina que nascia e enchia de esperança a Casa grande. Sinhazinha sorria e chorava erguendo a criança e dizendo aos céus: - Vês meu filho? Tu vives ainda nesta criança que me devolve a vida.
Uma linda menina de pele morena, cor de cuia e olhos levemente esverdeados, herança de seu pai, que foi batizada com o nome de Firmina do Rosário e ofertada à Santa padroeira da fazenda, N.Senhora do Rosário. Os negros sabiam que ali havia voltado um espírito muito especial para eles todos e por isso, pediram à Sinhazinha que os deixassem consagrá-la aos Orixás. E num ritual, ela foi cruzada com a Senhora da Água Grande para obter assim a proteção de que necessitaria a fim de cumprir sua missão.
Firmina foi a primeira dos muitos filhos que teve Amparo na sua vida fogosa de prazeres da carne. E embora todos os conselhos da madrinha e de sua mãe, suas fugas noturnas para a senzala lhe davam freqüentes barrigas e houve um tempo em que ela própria preferiu mudar-se para a senzala, abandonando a Casa Grande.
Firmina foi criada pela avó, a Sinhazinha que deu a ela educação esmerada e professores que a educaram como a um branco da época. De personalidade dócil, obedecia fielmente e respondia de forma agradável aos olhos de Sinhazinha, seu empenho em torna-la uma moça de família.
Ao contrário da mãe, era discreta em seus modos e muito religiosa o que a fazia admirada pelo sacerdote e também pelos escravos, de quem cuidava quando adoeciam. Aos poucos foi descobrindo que suas rezas com o rosário de contas de pérolas que ganhara da avó quando nascera e que era antiga jóia de família, herdado da corte de Portugal, tinham o poder de curar enfermos.
Trazia consigo uma sabedoria que não lhe fora ensinada naquela existência, pois quando benzia, usava de palavras totalmente desconhecidas pelos brancos que a criaram e que somente os negros mais velhos conheciam por terem ouvido dos feiticeiros, na saudosa África.
Isso não era simpático ao capelão que cobrava da Sinhazinha uma atitude. Até o dia em que ele próprio se viu acamado e muito febril, tendo sido desenganado pelo médico que dizia tratar-se de doença incurável. Firmina então resolveu visitá-lo. Enquanto conversavam, o padre percebeu que Firmina bocejava muito e de repente ela iniciou uma fala numa língua incompreensível e desconhecida dele, benzendo-o com seu rosário. Sem tempo de reclamar, o padre assustado suava sem parar e começou a tossir até expelir uma bola escura pela boca. Depois disso, adormeceu serenamente para acordar saudável no outro dia, para assombro de todos.
Muitos filhos de fazendeiros a galanteavam, pois era moça muito bonita, mas Firmina não era dada a muitas conversas e educadamente os dispensava.
Assim passou sua juventude, curando, rezando e auxiliando a todos que podia. Foi ela quem amparou e cuidou de sua avó materna, Maria do Rosário quando cegou no final de sua vida. Da mesma forma, foi presença constante ao lado da cama de sua avó paterna, a Sinhazinha quando esta adoeceu por longos anos, antes de morrer.
Tentou ajudar sua mãe, Amparo, bem como sua prole, mas não era bem vista por eles que carregavam o espírito aventureiro e preferiam uma boa briga a uma reza.
Temendo por sua integridade e pensando em ajuda-la, o tio avô que administrava a fazenda, tentou obrigá-la a casar-se com um rico fazendeiro. Ela tentou em vão convence-lo de que não queria isso para sua vida e que estava feliz em somente ajudar as pessoas.
Com noivado marcado alheio à sua vontade e com alguém que mal conhecera de vista, ela desesperada buscou ajuda de sua protetora, N.Senhora do Rosário.
Estranhando a falta de sua presença à mesa do jantar e não a encontrando em seu quarto, o tio pediu que os escravos fizessem uma busca na propriedade. Foi um de seus meio-irmãos que a encontrou desfalecida aos pés da Santa e seu rosário estendido sobre a relva. Seu coração já não batia mais, mas a serenidade de seu rosto demonstrava que ela morrera feliz.
Nunca houve uma perda tão triste naquela fazenda que se cobriu de luto e tristeza. Uma moça ainda tão jovem e tão bondosa faria muita falta a todos, mas principalmente aos escravos por quem nutria imenso carinho e cuidados.
No lugar onde caiu seu rosário, nunca mais nasceu relva alguma. Mas houve escravo que em noite de luar, enxergava Firmina rezando aos pés da santa, toda iluminada por uma luz azulada.
Os homens no afã de realizarem as suas vontades convencionais, invadem o livre arbítrio e afrontam as Leis Supremas, não deixando que se cumpra a vontade do Pai. Firmina foi cumprir o restante de sua missão nas terras de Aruanda e de lá, amparou e recebeu seus irmãos quando se libertaram da escravidão da matéria.
Ditado por Vovó Benta
26/05/2011
Fonte: www.facebook.com/TemploDeUmbandaVozesDeAruandaTuva
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